A Pipa de Carlinhos

by | Jun 2, 2020 | Neurastenia

Carlinhos desceu até a loja de ferragens do seu Manuel e comprou uma tablete de cola de madeira. Apanhou algumas pedras pelo chão e fez um fogão improvisado, acendendo o fogo com alguns gravetos e com um rolo de papel higiénico que alguém jogara fora. Foi até ao lixo e catou uma lata de leite ninho. Juntou um pouco de água e deixou a mistura derreter lentamente.

Partiu uma lâmpada fluorescente e deitou os cacos num collant, começando um processo metódico de esmagá-los com um paralelepípedo até que virassem um pó muito fino. Entornou o conteúdo na lata e mexeu bem, criando um cerol de excelente qualidade.

Pegou no seu carretel de linha número dez, esticou toda a extensão do fio por entre dois postes de alta tensão, pôs um pouco do líquido na sua mão esquerda, semifechada em forma de concha, e embebeu todo o cordão, tornando-o altamente cortante.

Correu até a venda da tia Zica e escolheu uma pipa de papel de seda com o emblema do Flamengo, o seu clube preferido. Prendeu uma rabiola à parte de baixo. Riu do fio comprido. Os vários pedacinhos de papel de seda amarrados à linha, lembravam-no sempre de uma lacraia.

Estava pronto. A sua pipa tinha estabilidade para voar e poder de ataque para combater. Subiu no telhado do velho barraco abandonado e largou linha, vendo o papagaio ganhar os céus do morro.

Como um predador das nuvens, escolheu a sua vítima, uma pipa azul e branca linda, que voava suntuosa. Cheio de habilidade, mergulhou na sua direção. O seu oponente ainda tentou fugir, mas não teve jeito. O cerol de Carlinhos cortou a linha do papagaio, deixando-o solto no vento, a cair lentamente.

Mas Carlinhos, que era um mestre na arte de soltar pipa, fez a sua arraia mergulhar em direção ao papagaio azul e branco, enrolando-se na sua rabiola. A partir daí, foi só recolher a linha lentamente e sorrir, ao ver aquela lindeza que acabara de capturar. No mundo das pipas, uns dias se ganha, outros se perdia. Era a vida.

Exatamente então começaram os fogos de artifício e as sirenes fizeram-se ouvir. A polícia estava a subir o morro.

Carlinhos olhou para a pipa vermelha no chão e entrou em pânico. Apesar dos seus doze anos, era olheiro do tráfico e a sua função era empinar aquela pipa cor de sangue sempre que detetasse algum perigo. Era já a segunda vez que falhava a sua tarefa e sabia qual seria a sua punição. Gostava tanto de soltar pipa que acabava sempre por se distrair e esquecia de fazer o que realmente tinha que fazer.

Pulou do telhado e fugiu. Foi encontrado algumas horas mais tarde, escondido atrás de uma caixa de água, por um dos seus amigos do tráfico.

Dois dias depois foi enterrado num caixão fechado, já que o seu corpo estava em muito mau estado para ser velado como devia ser. Quando os funcionários do cemitério preparavam-se para fechar a cova rosa, dona Ermínia, a sua mãe, pôs em cima da tampa uma pipa com o emblema do clube preferido do filho.

Onde quer que Carlinhos estivesse, quem sabe não pudesse ter lá de cima, aquela velha infância que nunca pudera ter aqui em baixo?

Eduardo Fernandes

Eduardo Fernandes

editor ◆ revisor ◆ developer

Tive duas filhas, plantei uma árvore, escrevi um romance…

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