Depois da meia-noite a vida começa, dispo-me do pijama e ponho o fato de guerreiro; pego a espada e saio pelos campos a matar. Não há troll que me resista, nem elfo que me faça frente. Esquivo, aparo e termino sempre com uma estocada fatal. Depois da meia-noite, eu sou o tal.
E quando não há vivalma, sou um super-herói que se evade pelo multiverso e acabo onde sempre se acaba, bêbedo num bar, rodeado de mulheres, a contar como venci o grande conquistador alienígena.
Depois da meia-noite estou num beco sujo, com a cabeça à roda e gosto de guarda-chuva na boca. Vomito com vontade e ouço o barulho. É ele! Tenho de fugir. Corro sem rumo, desesperado. Ele não descansa, vai sempre me encontrar.
Não há céu, nem sol. Estou num túnel de metro, sem saber para aonde ir. Não posso parar, nem fugir. Ele é um mostro, um fantasma, um assassino, daqueles que estripam e esventram enquanto cantam uma canção.
Ponho a máscara do rosto. «Gás!» Alguém grita e me escondo nas trincheiras, sabendo que o inimigo — aqueles malditos alemães — está sedento de sangue. Bombas, tiros, gritos. Corro com a baioneta em riste, como pena do bosche que se meter no meu caminho.
Calor, brilho, estou deitado na praia com um coco verde na mão. O frescor doce da água refresca-me, decido mergulhar. Que maravilha! Viro de costas, alguém passa-me protetor nas costas: uma morena linda, como não podia deixar de ser.
As suas mãos deslizam por entre os meus músculos cansados. Sinto-me leve, sinto-me solto. Quero nunca mais levantar. Imagino-me um Nabucodonosor, deitado nu no centro de um harém babilónico com uma beldade exótica a lamber-me o pescoço, os olhos, a orelha, a boca, o nariz…
É o cão!
Ó vida, ó azar, ó maldito cliché que me vem acordar. É de novo antes da meia-noite, bem antes, e tenho o dia todo pela frente. Chefe chato, reuniões, fazer pela vida. Calma cama, hei de voltar. Ser-te-ei sempre fiel. Tu e eu sabemos que, depois da meia-noite, eu sou o tal.
