16:00
Acendo um cigarro. Deixo a fumaça sair em círculos que se desfazem no ar. O café está frio, já não devem demorar muito. Ela está ali com os olhos muito abertos. Pela primeira vez, Columbina olha-me. Ainda assim, não me vê.
Mas eu vejo-a.
Vejo-a todas as noites nos meus sonhos, nos meus devaneios. As suas pálpebras, os seus cílios, a boca que me captura e me devora. Como queria ser realmente devorado, que me prestasse atenção, a este triste Pierrô que caminha calado pela universidade, escondendo as lágrimas, o desânimo, a frustração.
«Lá vai o bobo.» Arlequim sorri, abraçado à rapariga mais linda. O corta-vento desportivo com o padrão de losangos coloridos dá-lhe um ar de macho-alfa que odeio. Os amigos riem e Columbina beija-lhe os lábios.
“Malvada!”
16:15
Estou cansado. Sereias anunciam a chegada, não tarda estão aqui. Os cigarros acabaram-se.
«Some palhaço!» Arlequim não compreende que os seus insultos já não me afetam, ainda assim vangloria-se dos seus ataques fanfarrões. O que me dói é saber que não é à minha casa que ela vai depois do fim das aulas.
«Não o trates assim, é só um pobre coitado.»
“Tu não, Columbina. Não digas isso.”
16:30
Arlequim está caído no chão ao lado de duas ou três garrafas vazias de cerveja. Partiram-se com a queda, o líquido com uma tonalidade avermelhada a inundar o chão. Pergunto-me se Columbina sentirá a sua falta, mas, no fundo, sei que ela já não sente mais nada.
Alguém fugiu, deixando para trás um prato intocado com comida. Mesmo sem fome, começo a mordiscar as batatas fritas já murchas. O ato de mastigar ajuda-me a passar o tempo, não tenho nada melhor para fazer.
«Queres?» Pergunto a Columbina, sabendo que não pode responder. Puxo a 9mm do coldre, verifico se ainda tem alguma bala na câmara, encosto-a na minha testa. Estou cansado, estou mesmo cansado… só que me falta a coragem.
“Isso querias tu, Columbina.”
16:45
Não tenho cigarros, nem café, nem Columbina. Portas são arrombadas ao som de vozes de comando. Mais cinco minutos e me encontram.
Começo pela biblioteca, tambores rufam enquanto caminho pelas estantes. Livros voam, alunos também. Cuícas e cavacos. Ouço gritos e pedidos de misericórdia, mas não os escuto. Quando escutava, acabava sempre em lágrimas, mas chega de chorar por quem não me quer.
Surdos e reco-recos. Uma porta-bandeira abre alas para uma chuva de plumas e lantejoulas, vinho bordeaux que inebria tudo e todos, convidando-os a tomar parte da sua danse macabre carnavalesca.
A avenida está tomada pelo samba-enredo de um pierrô apaixonado, mas ninguém o canta. Estão todos mortos. Desvio-me de um corpo, alguém que caiu com a cara dentro de uma lata de lixo. Que metáfora maravilhosa, quase sinto vontade de rir. Quase sinto…
Chego ao refeitório, é hora do chocalho e do agogô. Quando a música termina, já só restam três pessoas vivas, e três é demais. Peço a Arlequim que me tire um café, depois descarrego-lhe a minha arma em cima. Ele cai, levando consigo duas ou três garrafas de cerveja que se partem, álcool misturado com sangue.
“O café está queimado.”
17:00
Lembro-me de uma música. «Morreu, o nosso amor morreu, mas cá pra nós, antes ele do que eu.» Já está quase tudo acabado. Viro-me para Columbina, deparo-me apenas uma mesa vazia. Aonde ela está? Como conseguiu fugir?
Então vejo, o corpo caído no chão. Escorregou num espasmo involuntário que, até na morte, o leva mais para perto do seu amado, o maldito Arlequim.
«Mataste-o!» Ela grita, os olhos cheios de lágrimas.
«Libertei-te. Agora vais ser minha.»
«Nunca!»
Aponto-lhe a pistola, miro-lhe o coração, incapaz de acreditar que o projétil conseguirá partir da dureza da pedra que ali reside.
Puxo o gatilho. Falho por pouco um polícia de preto que acaba de entrar, não chego a ouvir o estampido das balas que me trazem o fim.
Também na música Pierrot, dos Los Hermanos e no massacre de Columbine, nos Estados Unidos.