Deus está em todos os lugares.
Eu e tu,
poeira,
pequenos,
estamos apenas onde estamos,
ardentes para estar aonde nunca estivemos.
E onde estivemos está em nós,
recusa-se a sair,
a ir-se embora,
a deixar-nos tão levianamente quanto o deixamos,
num voo de uma companhia barata,
num banco de autocarro,
à boleia com um desconhecido.
Somos feitos de lugares-comuns,
que acreditamos conhecer,
compreender,
tiranizar,
mas se revelam profundos e místicos
a quem para, olha e vê.
Somos feitos de lugares-complexos,
repletos de traumas e neurastenias,
alegrias,
saudades nem sabemos bem de quê.
Encontros e desencontros,
relacionamentos despedaçados,
almas gémeas.
Somos células, vírus, bactérias.
Multiversos,
universos quânticos
de átomos entrópicos
que teimam em não se desintegrar.
Somos terra vinda da Terra,
enchidos com um vento que não é daqui, nem dali,
mas de acolá.
Vida em forma de espírito.
«Sopra»
Somos o ontem e o hoje.
Somos o que renegamos, o que tentamos apagar:
a História da nossa estória,
uma narrativa fanática, mentirosa.
Somos o que fingimos:
nossas certezas e realidades.
Mutantes por todo o sempre,
eternos enquanto dure.
Somos “quem somos”, “de onde viemos” e “para onde vamos”,
macacos enlouquecidos por saber que não sabem.
Somos espaços,
por onde passamos e não estamos mais.
Um vazio que não se cala,
que grita por não ser lugar,
mas desespera por ser
e que, ainda não sendo, teima em sê-lo
dentro de nós.
Somos uma luta contra o travesseiro,
que remói o que urgimos por esquecer:
o vazio que só o deixará de ser quando for
lugar.
Mas eu e tu,
poeira,
pequenos,
estamos apenas onde estamos,
ardentes para estar aonde nunca estivemos,
para preencher este lugar-vazio que nos preenche.
Deus está em todos os lugares.