Quando eu era adolescente, alguém cantava na rádio que sexo verbal não fazia o seu estilo, afinal, “palavras são erros e os erros são teus[1]Eu Sei, composta por Renato Russo.”. O mais engraçado é que o cantor terminava o verso a dizer que não queria lembrar-se de que errava também.
Estava a pensar nas questões linguísticas do politicamente correto, na linguagem neutra, nas discriminações positivas, nas lutas anti-“ismos”, e em qualquer trending que ande a engajar as pessoas atualmente. Os errados são sempre os outros… ainda que, para os outros, os “outros” seja eu.
Mas isso não importa. O que me parece realmente relevante é que toda a gente — menos eu, é claro — elegeu o seu ódio de estimação e, numa reação apaixonada, sabe exatamente o que fazer para pôr o seu némesis no seu lugar: o fogo do inferno.
E aí é que começa o problema: reação apaixonada.
Amor vs Ódio
As pessoas têm uma grande tendência a acreditar que o ódio é o contrário do amor. Não é. O ódio é o contrário da paixão. A falta do amor leva, inevitavelmente, à apatia.
É fácil perceber, basta pensar em todas as pessoas em quem eu não penso. Não as amo, nem as odeio, elas simplesmente não me dizem nada.
A partir de um momento em que um grupo vem rapidamente à minha cabeça, a minha relação com ele é apaixonada e sinto alguma coisa. Há aqueles que apoio ou sinto pena (paixão positiva); há aqueles que desprezo (paixão negativa, ódio).
É indiferente o que eu sinta, porque a paixão e o ódio têm sempre a ver comigo, não com os outros.
Um racista não quer saber se um negro ou um cigano são boas pessoas; para ele, são os dois desprezíveis. Para uma feminista radical, todos os homens são misóginos e chauvinistas. Um machista não concebe que as mulheres sejam mais inteligentes que ele.
A paixão faz com que eu idealize platonicamente o outro. O ódio faz com que eu demonize platonicamente o outro. Nenhum dos dois faz com que eu veja o outro pelo que ele é.
E, centrado no eu, reajo contra aquilo que ataca o objeto da minha paixão — causando-me mal-estar — e dou início — ou continuidade — a um círculo vicioso de ódio.
Os índios brasileiros — todos eles — eram assim. Viviam numa guerra interminável, cujo único objetivo era continuar a guerrear: guerra pela guerra.
Os tupinambá, para vingar os seus mortos, atacavam os tupiniquim, capturavam alguns guerreiros e devoravam-nos em rituais antropofágicos; o que levava que os tupiniquim, para vingar os seus mortos, atacassem os tupinambá, capturassem alguns guerreiros e devorassem-nos em rituais antropofágicos; o que levavam que…
No fim das contas, os portugueses mataram tanto os tupinambá quanto os tupiniquim e ficou tudo em paz.
Ação vs Reação
A sério agora, não posso mudar o mundo através do ódio ou da paixão. Ninguém pode. A Disney tem razão quando diz que só o amor verdadeiro pode.
Cristo sabia muito bem disso e, por todos os evangelhos, recusa-se a reagir apaixonadamente para agir em amor. Ele quebra os círculos de ódio ao não fazer o que é expectável.
Quando lhe levam uma adúltera para ser morta (João 8:1-11), ele faz com que os fariseus olhem para si mesmos e percebam que não são assim tão melhores que ela; ao mesmo tempo, a mulher olha para si mesma e percebe que errou.
É esse o caminho: ao invés de reagir enquanto o olho para os outros, agir enquanto olho para mim mesmo.
Olhar para mim mesmo faz com que eu reconheça os meus defeitos e perceba que não sou tão diferente do outro. Na verdade, sou capaz de fazer tudo o que há de mau. Se for mesmo sincero, já fiz ou farei aquilo que não gosto que o outro faça… ou talvez as circunstâncias sejam-me favoráveis, ainda que a capacidade de fazer esteja lá.
Como seria bom viver num mundo em que as pessoas deixassem de discutir sobre como mudar os outros e começassem efetivamente a tentar mudar-se a si próprias… mas não quero falar sobre isso porque as palavras são erros e os erros são teus.