Tatu

by | Ago 28, 2023 | Devaneios

Hoje em dia é preciso ser tatu. Avestruz não basta. Já foi tempo em que era suficiente estar com a cabeça na areia, fingir que não via. Hoje é de corpo inteiro, proteção total, buraco fundo. Nunca se sabe de onde vem o perigo.

Hoje em dia somos muito evoluídos, tão evoluídos que não sabemos mais nada: achamos! E achar é mais do que suficiente. Para quê factos? Para quê ciência? Para quê biologia? Somos pós-modernos, existimos numa bolha de pós-verdade onde a verdade é a minha, é a tua e é a de toda a gente.

Na verdade, mentir é discordar.

Não basta olhar para o lado, fingir que concorda, ignorar um ou dois factos. É preciso estar comprometido com a estupidez alheia. «É a verdade dela.» Como dizia um grande sábio tropicalista: “somos uns boçais”. E digo mais, somos prisioneiros da balela absurda de que todas as crenças são igualmente boas e merecem ser respeitadas.

Somos todos tatus autoaprisionados nas covas que nós próprios cavamos.

Postamos com l3tr@s no f@c3b00k e no 1nt@gr@m para não sermos censurados, cancelados, e achamos normal, ótimo mesmo. É preciso calar os fascistas… os racistas… os homofóbicos… o patriarcado… os negacionistas… os eleitores de extrema-direita… enfim, meter na areia aqueles que não querem ser tatu, que não alinham na narrativa, vestem a camisola ou acreditam na estória.

Só que não há mais verdade. Há a minha verdade, a tua verdade. Tudo é verdade. Num belo dia, uma verdade pode – e irá – tornar-se a mentira do outro.

Quando esse dia chegar, só mesmo virando tatu, entrando no buraco, porque o cancelamento é certo. Não adiantam factos nem argumentos. É a tua verdade, lembras? E a tua verdade só vale enquanto for a verdade de todos, tão inócua que o padre e a prostituta se sintam bem à vontade em partilha-la. Um desejo de “paz na Terra” que sai da boca da miss.

Como dizia um grande sábio judeu, “ama o teu próximo como a ti mesmo”. E digo mais, ele estava errado! Somos pós-modernos o suficiente para saber que o certo é “ama o teu próximo e anula-te a ti mesmo”. Que maravilha é aderir a uma ideologia e sentir-se acolhido pelos braços amorosos da ignorância!

Retrair-se… calar-se… emparedar-se… ser tatu. Do sonho de voar que um dia nossos pais tiveram, resta-nos apenas o de ser avestruz, de poder colocar apenas cabeça na areia e sentir na pele um pouco da brisa livre que corre pelo fim da tarde.

Este artigo foi escrito em resposta ao Desafio Criativo do Projeto Escrita Criativa cujo tema era “Tatu”.
Eduardo Fernandes

Eduardo Fernandes

editor ◆ revisor ◆ developer

Tive duas filhas, plantei uma árvore, escrevi um romance…

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