Eu sou o patriarcado

by | Mai 4, 2022 | Devaneios

Outro dia um colega — feminista ferrenho — perguntou-me qualquer coisa como «mas tu não achas que temos que ajudar as mulheres na sua luta pelo empoderamento contra o patriarcado?»

— Mas eu sou o patriarcado… — Respondi.

Ele parou um momento para perceber se estava a brincar, depois disse-me que eu não era de todo o patriarcado.

— Sou branco; hétero; defendo a família tradicional; sou tão antifeminista quanto antimachista; discordo radicalmente da ideologia de género; enfim, sou tudo aquilo que as feministas dizem ser o patriarcado.

Mais silêncio.

Conseguia ver o seu cérebro a trabalhar, tentando vestir-me com a pele de inimigo mortal de todas as mulheres — o que não sou — até finalmente chegar a conclusão de que eu só podia estar maluco. Achei interessante ele não ter parado para pensar se o problema não era o excesso de preconceito no seu conceito de patriarca.

Os rótulos são maravilhosos.

É uma delícia virar escritor de banda desenhada e dividir todos em bons e maus. O mundo fica tão simples quando o nosso inimigo é o Racista Branco, o Chicoteador Homofóbico ou o Misógino de Fogo. Só que a simplicidade só funciona na ficção.

Num exemplo brasileiro, dá menos trabalho assumir que todos são racistas, do que questionar porque é que os pobres frequentam escolas de péssima qualidade, que impedem o elevador social e que perpetuam a miséria, fomentando o crime e a repressão; e o impacto que o facto de muitos pobres serem negros tem sobre o racismo. E é muito mais fácil criar quotas para minorias do que investir nos alunos que precisam.

Creio ser óbvio que pouquíssimos governos investem a sério na educação e nas estruturas de base.

Educação é coisa de estadista, não de político. Os investimentos mais importantes só serão percebidos décadas depois, com muito pouco “ganho político” e visibilidade. Mais vale construir rotundas, dar bónus de dez euros aos aposentados ou fazer algum outro imediatismo qualquer. Além do mais, cidadãos cultos têm a tendência a pensar e a questionar, ao invés de abaixar a cabeça.

O mundo está repleto de simulacros, de pseudoconceitos que todos creem dominar na perfeição, mas que não passam de lugares-comuns.

O absurdo é esses mesmos clichés ditarem quem se deve amado, odiado e “cancelado”… e há uma relação clara entre a falta de força dos estereótipos demonizadores e das ideologias utópicas, e o ataque brutal à liberdade de expressão dos nossos dias.

A verdade é que a maioria das certezas cairia se fossem provadas pelo mesmo crivo usado para avaliar aquilo com que se discorda. E isto é tão perigoso…

Num mundo sem certezas nem absolutos, em que todos estão desesperados por algo que dê sentido à vida, o que aconteceria se as pessoas chegassem à conclusão de que, naquilo que procuram, não há nenhum?

Eduardo Fernandes

Eduardo Fernandes

editor ◆ revisor ◆ developer

Tive duas filhas, plantei uma árvore, escrevi um romance…

Categorias

 Artigos
 Contos
 Poesia

Posts relacionados

Tatu

Tatu

Hoje em dia é preciso ser tatu. Avestruz não basta. Já foi tempo em que era suficiente estar com a cabeça na areia, fingir que não via. Hoje é de corpo inteiro, proteção total, buraco fundo. Nunca se sabe de onde vem o perigo. Hoje em dia somos muito evoluídos, tão...

Eu admiro o PCP

Eu admiro o PCP

Not really, mas escrevo após ter ouvido ontem um programa de comentário político cujo título era Cegueira ideológica do PCP ou suicídio.

Haverá

Haverá

Hoje um amigo de infância morreu. Quarenta anos, um menino! E era mesmo um menino, e era assim que me lembrava dele. Um menino.