Tive uma professora na faculdade que dizia que somos ”sequencialmente monogâmicos”, ou seja, temos uma relação monogâmica e fiel até que o deixe de ser, então começamos uma nova relação monogâmica e fiel, e assim por diante até o dia em que morremos ou somos muito pouco atrativos para continuar com o ciclo.
Lembrei-me disso porque, outro dia, alguém mandou-me para ler um ensaio que escrevera sobre a monogamia. Resolvi então redigir uma resposta que, no fundo, também é um ensaio.
Nota: Como, de uma forma normal a monogamia é expressa através do casamento, pode ser que use os dois termos como sinónimos em algum lugar.
Passado
Eu diria que durante quase toda a história da humanidade, as pessoas casavam-se por interesse, com casamentos arranjados. Queriam filhos, queriam terras ou queriam alianças. O casamento tinha um intuito, uma razão, que não tinha nada a ver com a emoção.
Os romanos e os japoneses, por exemplo, separavam muito bem a sexualidade do casamento. Um samurai amava o imperador e tinha profundo dever para com o seu senhor, respeitava a sua esposa enquanto progenitora da próxima geração, e satisfazia as suas necessidades românticas e sexuais com outras mulheres.
E ao contrário do que podemos acreditar, tinha muito sentido já que, a qualquer momento um senhor da guerra qualquer podia aparecer e matar uma vila inteira. Estabelecer alianças através de casamentos servia não só para diminuir o interesse de nobres rivais (já que os netos nascidos das alianças viriam a ser senhores das terras cobiçadas) como para obter ajuda contra um inimigo comum.
A modernidade — e o capitalismo — reduziu o valor extrínseco da terra, passando-o para as fábricas e para os serviços. Com a menor importância da terra, os filhos deixaram de ser força de trabalho para serem custo. Com o aparecimento dos Estados-nação, da democracia e do multilateralismo, as alianças individuais entre famílias já não são assim tão relevantes.
Ao mesmo tempo, no início do século XIX surge o romantismo, um movimento que rejeita o clássico, preconiza que o homem não é só feito de razão e, por isto mesmo, deve entregar-se ao sentimento. A idealização do “amor romântico” que ali tem origem, muda a noção de casamento. Tirando algumas culturas (penso na África, nos países muçulmanos, no oriente, em algumas etnias…) a grande maioria das pessoas passou a casar-se por paixão.
Hoje já não é assim. Hoje voltou-se a casar-se por interesse, embora se diga que é por amor.
Presente
Canso de ver colegas que vão viver junto, em relacionamentos românticos (o que, na prática, é um casamento) apenas para dividir as contas de uma casa que não teriam condições de pagar sozinhos. Vejo mulheres divorciadas com filhos pequenos que se casam novamente com um homem muito mais velho que seja capaz de dar suporte financeiro. Alguns fazem-no pelo sexo, outros simplesmente não querem estar sós.
Ao longo do caminho, o sentimento já não é importante, o que conta é o prazer do coito. Como um amigo disse uma vez, “toda a gente quer sexo: uns querem-no com compromisso, outros sem”.
Creio que há um reajustar de objetivos baseado nas experiências anteriores. De deceção em deceção, as pessoas vão baixando as suas expectativas. Do “príncipe encantado” do “felizes para sempre”, para o “sugar daddy” do “eterno enquanto dure”.
Independentemente da razão pela qual se case (na minha opinião, todas são válidas) um casamento só será satisfatório se ela, em algum momento, transformar-se em amor.
Costumo dizer que as pessoas confundem amor com paixão e com desejo.
Nota: É interessante perceber que muito se fala sobre o casamento como uma instituição machista, burguesa e dominadora o que, por si só, é uma discussão interessante, muito complexa, e que vai muito além do tema deste ensaio. De qualquer maneira, é importante ressaltar que não se pode analisar do casamento histórico do ponto de vista de um homem ou de uma mulher do século XXI, nem se pode esquecer que o casamento (como tudo o mais) segue os valores sociais da sua época.
Amor e Paixão
O ódio não é o contrário do amor, mas sim da paixão. O contrário do amor é a apatia.
Os gregos tinham quatro palavras que viraram o nosso “amor” português:
- “STORGE”, que existe na família.
- “FILOS”, que é o amor de amigo.
- ”EROS”, de onde vem erotismo, que é o amor sexual.
- “AGAPE”, que é o amor incondicional, quase divino. Platão e alguns filósofos usavam-no em contraste com os outros.
Tal como Platão, também creio que o amor não tem nada a ver com paixão. Amor é o resultado do verbo amar, é uma ação. É um ato consciente que pressupõe abdicar, cuidar… Normalmente faz-se acompanhar de sentimento, mas pode não ser o caso. É muito difícil definir o amor.
Particularmente gosto muito da explicação de amor que Paulo dá em 1ª Coríntios 13:
O amor é paciente e bondoso. Não é invejoso, nem orgulhoso; não é arrogante, nem grosseiro.
O amor não exige que se faça o que ele quer. Não é irritadiço e dificilmente suspeita do mal que os outros lhe possam fazer.
Nunca fica satisfeito com a injustiça, mas alegra-se com a verdade. O amor nunca desiste, nunca perde a fé, tem sempre esperança e persevera em todas as circunstâncias.
A paixão é o oposto. Como dizia Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
A paixão (que o poeta chama de amor) precisa de, exige, é um fogo que consome até não sobrar nada. É uma hedonista travestida de boa pessoa.
Já o desejo é aquilo de que não podemos fugir. Obviamente, se eu vir uma mulher linda na rua, vou sentir desejo por ela. É inevitável. Se eu alimentar esse desejo, ele acabará por se transformar em paixão. Se eu suprimí-o, ele irá desaparecer e, pouco tempo depois, já nem vou lembrar-me dele.
Expectativa vs Realidade
Como dizia um sábio apologeta, um dos grandes problemas dos nossos dias é a falta de integridade intelectual. Todos sofremos desse mal. Analisamos de forma a justificar aquilo que acreditamos. Somos parciais porque queremos estar certos.
Quando um lorde feudal casava com uma mulher, não esperava amor. Para ele, era muito claro que o objetivo ali não era a sua realização sentimental enquanto homem (e aqui vou deixar de lado a questão do machismo, mas poderia ilustrar a mesma ideia com uma patrícia romana). Era uma questão de razão e de dever para com outros. Justo ou injusto, era assim.
Hoje, muitas vezes o casamento é motivado pelo hedonismo, ou seja, pela minha realização pessoal.
Quando alguém casa por paixão, espera ser realizado em todos os aspetos, incluindo ser amado, respeitado e ter excelente sexo. Quando alguém casa por dinheiro, espera ser sustentado, amado, respeitado e ter excelente sexo. Ou seja, vemos o casamento com um veículo para a realização de todas as carências que não conseguimos suprir de outra forma
E note que o vemos assim, ainda que nós não estejamos verdadeiramente dispostos a fazer o mesmo pelo outro. Temos que nos sentir realizados, o nosso parceiro não necessariamente… Ou seja, a expetativa é «caso-me contigo para que me faças feliz». Um casamento assim só pode correr mal, porque é impossível que uma pessoa faça outra feliz.
Pelo contrário, alguém que já seja feliz que pode ter a sua felicidade completada num casamento, mas não o contrário. Aliás, acredito fortemente que nada neste mundo possa fazer alguém feliz, mas esta é outra estória.
Felicidade vs Alegria
Aqui é importante um parêntesis: gosto de pensar que felicidade não é o mesmo que alegria.
Para mim, alegria é um sentimento que vem e que passa. Estou alegre porque o meu clube ganhou. Estou alegre porque entrei para um mestrado. Ou ainda, estou alegre porque recebo moro próximo à praia.
A alegria tem sempre um porquê, uma razão e uma explicação. Quando esta razão desaparece, carrega com ela a alegria.
A felicidade, por outro lado, é algo que se tem ou que se é, independente da razão. Creio que há pessoas felizes e outras que não o são. Não sei explicar porque é que tal acontece, mas seria capaz de dar um chute controlado e dizer que deve estar ligado à satisfação e ao contentamento.
O que realmente sei é que, apesar de todos as dificuldades que já tive na vida, eu sou feliz.
Intimidade
E agora, voltando ao casamento e ao amor, a primeira razão pela qual um relacionamento monogâmico pode ajudar na completude da felicidade é a intimidade.
Helmut Newton, o famoso fotógrafo de moda, disse certa vez que “o amor é a mancha castanha na parte detrás das cuecas”.
É verdade, a intimidade é algo único e espetacular, mas passa por tirar as máscaras e perder a vergonha de se expor. Ao contrário do que as pessoas esperam, leva-se muitos e muitos anos a conseguí-la e dá imenso trabalho.
Neste ponto, a monogamia é essencial. Somos como a água e como a eletricidade, procuramos sempre o caminho mais fácil. A poligamia permite trocar a intimidade pelo sexo, fugindo de todos os obstáculos que terão que ser transpostos para alcançá-la.
Intimidade, do latim “INTIMUS”, que é o superlativo de “IN” (dentro). Ou seja, intimidade significa “DENTRÍSSIMO”, mais que dentro. É impossível ser íntimo sem viver junto.
Duas pessoas com experiências diferentes, vindas de contextos diferentes e com objetivos diferentes inevitavelmente irão chocar-se ao viver num mesmo teto. O mais óbvio é “chutar o pau da barraca” e partir para outra menos complicada, mas, o problema, é que todos os parceiros são igualmente complicados.
Por outro lado, se alguém anula-se para manter o relacionamento, adia o problema ou obriga-se a uma vida de insatisfação.
Sem ilusões… É duro.
A monogamia, na ótica de que “só há um”, obriga os dois lados a acertarem os ponteiros até chegarem a uma convivência pacífica. Abdica-se de algumas coisas, aceita-se outras e impõe-se umas poucas, mas consegue-se chegar a um meio-termo satisfatório para ambas as partes.
Nalguns casos, isso pode ser um problema. As pessoas não mudam nunca e os seus defeitos tendem sempre a piorar com a intimidade, então, há pessoas que pura e simplesmente são incompatíveis.
Não creio que venha muito ao caso para este ensaio o como lidar com essa incompatibilidade. Conheço quem tenha partido para outra, conheço quem tenha adotado uma postura asceta e suportado estoicamente o seu fardo como modo para mudar-se a si próprio, numa postura quase zen.
Cada um é cada um, mas é importante compreender que algo limite não deve ser usado como regra, nem como desculpa para desistir.
De qualquer maneira, este processo de ajustamento é exatamente como cantava Cartola, um moinho que tritura sonhos e ilusões. A farinha que sai dele, inevitavelmente, é amarga ou doce. Amarga para os casamentos que se mantém pelas razões erradas (como filhos ou contas da casa), doce para os casamentos em que o amor é a regra.
Sexo e Amor
Onde há amor, a confiança também está presente. Onde não há, impera o ciúme, a competição e a possessividade.
O sexo no casamento não pode ser nem sobrevalorizado, nem desvalorizado. Embora possa ser difícil de aceitar, o sexo fora dele é sempre bom, exatamente por não ter envolvência.
A amante é um oasis num deserto. Nunca está despenteada, nem tem mau hálito. Não está cansada demais para abrir as pernas porque ter tido um dia complicado no trabalho. Ela não reclamará das cuecas no chão nem da louça para lavar porque, até porque provavelmente estarão os dois num hotel.
A traição é um evento especial, uma peça encenada sempre num palco bem cuidado, em que toda a cenografia foi pensada para deixar de fora o que é normal. Se assim não for, a amante vira esposa e começam os atritos.
A amante é boa por ser apenas uma ilusão, da mesma forma que a deusa na capa da Playboy não passa de uma ilusão. Há coisas que só tem sentido enquanto utopia.
Já o casamento é a prática do dia a dia. O sexo tem que aprender a ser bom numa situação que pode não ser.
Um marido não pode chegar no quarto, dar dois ou três beijinhos de prelimirares, arrancar as cuecas da esposa e partir para o golo. Não, muitas vezes ele vai ter que levar com uma hora de conversa chata sobre coisas que não lhe interessam.
Esta é a diferença da masturbação. Ao invés de satisfazer-me a mim mesmo, satisfaço a minha esposa, tendo a paciência de ouví-la, para que ela me satisfaça a mim e, assim, satisfaçamo-nos os dois sexualmente juntos. Não é o “eu”, é o “nós”.
Realidade
No casamento, como na vida real, as pessoas são personagens complexas e precisam lidar com o contexto. O sexo fugaz é como o encanador do filme pornográfico, que chega na cozinha e ouve alguém a dizer «que chave-inglesa grande que tu tens… estou louca para que me desentupam os canos». E depois de tudo acabado, guarda as ferramentas e parte para o próximo trabalho.
Ao mesmo tempo que é difícil lidar com o contexto do outro, também é fácil. O amor passa por tentar fazer o outro feliz e isto implica sacrifícios. Implica em deixar de se focar na alegria momentânea, talvez em engolir sapos ou deixar de ver a bola um dia ou dois.
Não tem a ver com ser infantil ou carente, mas tem tudo a ver com dependência. É como aquela música que diz “When the night has come and the land is dark, and the moon is the only light we see. No I won’t be afraid just as long as you stand by me”.
Não é posse, autoridade ou dever. Pelo menos, não deveria ter. O amor pede que se dê. Quem dá, dá porque quer, não por ser obrigado. É uma mudança de perspetiva: ao invés de exigir ser feliz, tentar fazer o outro feliz.
Parece fácil, mas é muito difícil. Compensa, mas é muito difícil. Tão complicado que é impossível de ser atingido sem uma relação monogâmica.
Sem fidelidade, a opção do caminho mais fácil será sempre utilizada. Faz parte da natureza humana.
É essa a beleza do amor: ele não pode ser imposto, tem que ser dado de livre e espontânea vontade. Eu só amo porque decidi amar e, ainda que não queira amar, continuo a fazê-lo por ter decidido amar.