Ah serpente do meu paraíso, tentação de ser e não ser! Entre corações partidos e entranhas que se derramaram, deixo-me simplesmente ficar. Por onde andei? De onde vim e para aonde vou? Sei que estou, mas e daí? Não estamos todos também?
Sinto menos, sinto-me vazia. A minha pele devorada por mordidas de desejo que me juraram amar. Ninguém ama ninguém. Como dizia o poeta, comei-vos uns aos outros! Melhor é comer que ser comido, o lombo alheio é muito mais nutritivo que o próprio. [1]O Sermão do Diabo, de Machado de Assis. Ver https://contobrasileiro.com.br/o-sermao-do-diabo-texto-de-machado-de-assis/.
Continuo aquecida pelo sol de agosto. Na minha pele, branca e sem vida, o toque gélido da espuma que se forma das ondas que vão e vêm. Ouço apenas o grasnar das gaivotas, e se trabalho, não é nem para o ganho, nem para o bronze.
O meu sangue está fora de mim. O ar que me oxigena vem de outro pulmão que não o meu, e nos meus brônquios há apenas nicotina barata. Roo as unhas, abocanho as cutículas. Peço à manicura que use tons pasteis.
Os meus olhos estão borrados. Flutuo no pântano da minha existência, num niilismo otimista que não se pode explicar. Ignoro factos e acredito no que sinto. Acho que já não sou capaz de sentir.
Em meio à lama e à água suja, sapos pulam à procura de moscas. Se há uma verdade absoluta no universo, é que príncipes não vivem no charco. Eu também não vivo em nenhum palácio.
Entro no estúdio e entrego o desenho. A dor das agulhas tatua nas minhas costas a lótus que eu queria ser. Transformada e renascida, beleza nascida do nojo. Mas não… não há mudança, nem transformação. Entre corações partidos e entranhas que se derramaram, deixo-me simplesmente ficar. Por onde andei? De onde vim e para aonde vou? Sei que vou continuar, mas e daí? Não continuamos todos também?
References
↑1 | O Sermão do Diabo, de Machado de Assis. Ver https://contobrasileiro.com.br/o-sermao-do-diabo-texto-de-machado-de-assis/ |
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