Lá pelos idos de 1950, houve uma caça às bruxas nos Estados Unidos chamada Macarthismo. Um senador americano chamado Joseph McCarthy criou um esquadrão anti-comunista para encontrar homossexuais e simpatizantes da URSS. Tudo contra a “Ameaça Vermelha”.
Além de processos-crime baseados em acusações conseguidas através de delações e coerções, havia cancelamentos sumários. Guionistas, diretores e atores eram adicionados a uma lista negra e proibidos de trabalhar, muitos por terem sido denunciados por colegas mas se recusado a fazer o mesmo.
Ser culpado não era realmente o ponto.
Décadas mais tarde, vários filmes criticam o período, muitos deles financiados e produzidos pelos mesmos estúdios que apoiaram os cancelamentos. Aconselho Cidadão Cohn, brilhantemente protagonizado por James Woods, e The Majestic, protagonizado por Jim Carrey.
Não é preciso dizer que, nesses filmes, McCarthy e seus comparsas são sempre os vilões.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Hoje, o Macarthismo não é de direita, mas de esquerda. Wokismo, feminismo radical, questões identitárias, emergências climáticas. Há jargões e narrativas por todos os lados, e aqueles que se recusam a partilhar da visão libertária do novo mundo são pura e simplesmente cancelados.
Não importa mais a presunção da inocência ou o facto de a constituição proibir a censura. Aliás, nem é censura, é apenas proteger a sociedade, não ofender o outro.
Uma rede social desmonetiza ou apaga o canal de um criador. Outra faz shadow banning de conteúdos, dá strikes ou elimina contas. Tudo sem prestar contas a ninguém.
São multinacionais, rainhas da selva que é a Internet, nenhuma das suas decisões passa por tribunais. Além disso, os próprios governos têm interesse que certos conteúdos sejam restritos. A cereja no topo do bolo são as definições das regras de conduta dos sites, extremamente vagas, e os muito opacos mecanismos de decisão.
Não faltam exemplos. Cancelaram um presidente americano. Cancelaram a rede social Parler. Chocou-me particularmente o cancelamento do Scott Adams, criador do Dilbert. Agora a bola da vez é o Russell Brand, ator e humorista.
Notem que não importa o porquê. Se houve crime, que sejam os tribunais a tratar do assunto, mas é o bang-bang, o Velho Oeste cibernético. Não há lei, apenas empresas que metem estrelas de xerife em si mesmas. E toca a enforcar foras-da-lei, chineses que acharem muito pesados os trilhos das ferrovias e qualquer um que der um passo em falso.
É simples assim! Se as empresas decidem as regras, só resta ajeitar o melhor possível a corda no pescoço e esperar que ele parta de primeira. A cavalaria não irá chegar, a alternativa é ficar agonizando sem respirar.
O que mais me preocupa é que, tal como os americanos apoiavam o Macarthismo, hoje apoiamos a falta de liberdade de expressão e a lógica do cancelamento. Não o diremos, claro! Nem o admitiremos. Muitos de nós, nem mesmo se apercebem que estão a defender censuras e mecanismos de coerção, mas estão.
A liberdade de expressão deveria ser dos mais importantes dos direitos, próximo ao direito à vida, porque sem ele é fácil que os outros direitos sejam cerceados. Não é à toa que se diz que sem jornalismo não há democracia.
E se alguém abusa do direito de se exprimir, a lei tem mecanismos para punir. Não é agindo por debaixo dos panos, fora dos tribunais, que se cria uma sociedade que tenha sentido, que tenha futuro.
Por último, a censura, o cancelamento e a caça às bruxas são motivados pela arrogância e pela estupidez.
A arrogância de se achar superior aos outros, de se achar bom enquanto o outro é mau, certo enquanto o outro é o errado. A certeza é inimiga da sabedoria, como já diziam os antigos. «Só sei que nada sei».
Se as pessoas pensassem mais naquilo que “sabem”, perceberiam que muito do que acreditam ser verdade não passa de achismo, quando muito chutes controlados. Em qualquer certeza deveria haver um pouco de incerteza que permitisse ouvir o outro, repensar o que se acredita com base no que outro disse e tentar perceber se tem mesmo sentido e se é verdade ou não.
É como aquele diálogo entre Kay e Edwards no filme Men in Black:
Há mil e quinhentos anos toda a gente sabia que a Terra era o centro do universo. Há quinhentos anos, toda a gente sabia que a Terra era plana e, há quinze minutos, sabias que os humanos estavam sozinhos neste planeta. Imagina o que saberás amanhã.
Nada melhor do que terminar com uma citação do John Stuart Mill.
Se toda a humanidade, menos uma, fosse da mesma opinião, e apenas uma e apenas uma pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais razão em silenciar essa pessoa, do que ela, se tivesse o poder, estaria do que ela, se tivesse o poder, estaria justificada em silenciar a humanidade.