Carlinhos desceu até a loja de ferragens do seu Manuel e comprou uma tablete de cola de madeira. Apanhou algumas pedras pelo chão e fez um fogão improvisado, acendendo o fogo com alguns gravetos e com um rolo de papel higiénico que alguém jogara fora. Foi até ao lixo e catou uma lata de leite ninho. Juntou um pouco de água e deixou a mistura derreter lentamente.
Partiu uma lâmpada fluorescente e deitou os cacos num collant, começando um processo metódico de esmagá-los com um paralelepípedo até que virassem um pó muito fino. Entornou o conteúdo na lata e mexeu bem, criando um cerol de excelente qualidade.
Pegou no seu carretel de linha número dez, esticou toda a extensão do fio por entre dois postes de alta tensão, pôs um pouco do líquido na sua mão esquerda, semifechada em forma de concha, e embebeu todo o cordão, tornando-o altamente cortante.
Correu até a venda da tia Zica e escolheu uma pipa de papel de seda com o emblema do Flamengo, o seu clube preferido. Prendeu uma rabiola à parte de baixo. Riu do fio comprido. Os vários pedacinhos de papel de seda amarrados à linha, lembravam-no sempre de uma lacraia.
Estava pronto. A sua pipa tinha estabilidade para voar e poder de ataque para combater. Subiu no telhado do velho barraco abandonado e largou linha, vendo o papagaio ganhar os céus do morro.
Como um predador das nuvens, escolheu a sua vítima, uma pipa azul e branca linda, que voava suntuosa. Cheio de habilidade, mergulhou na sua direção. O seu oponente ainda tentou fugir, mas não teve jeito. O cerol de Carlinhos cortou a linha do papagaio, deixando-o solto no vento, a cair lentamente.
Mas Carlinhos, que era um mestre na arte de soltar pipa, fez a sua arraia mergulhar em direção ao papagaio azul e branco, enrolando-se na sua rabiola. A partir daí, foi só recolher a linha lentamente e sorrir, ao ver aquela lindeza que acabara de capturar. No mundo das pipas, uns dias se ganha, outros se perdia. Era a vida.
Exatamente então começaram os fogos de artifício e as sirenes fizeram-se ouvir. A polícia estava a subir o morro.
Carlinhos olhou para a pipa vermelha no chão e entrou em pânico. Apesar dos seus doze anos, era olheiro do tráfico e a sua função era empinar aquela pipa cor de sangue sempre que detetasse algum perigo. Era já a segunda vez que falhava a sua tarefa e sabia qual seria a sua punição. Gostava tanto de soltar pipa que acabava sempre por se distrair e esquecia de fazer o que realmente tinha que fazer.
Pulou do telhado e fugiu. Foi encontrado algumas horas mais tarde, escondido atrás de uma caixa de água, por um dos seus amigos do tráfico.
Dois dias depois foi enterrado num caixão fechado, já que o seu corpo estava em muito mau estado para ser velado como devia ser. Quando os funcionários do cemitério preparavam-se para fechar a cova rosa, dona Ermínia, a sua mãe, pôs em cima da tampa uma pipa com o emblema do clube preferido do filho.
Onde quer que Carlinhos estivesse, quem sabe não pudesse ter lá de cima, aquela velha infância que nunca pudera ter aqui em baixo?